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O crepúsculo

Rubem Alves

"Se durante o dia o vôo dos pássaros parece sempre sem destino, à noite dir-se-ia reencontrar sempre uma finalidade. Voam para alguma coisa. Assim, talvez, na noite da vida..." Camus tinha 29 anos quando escreveu essas palavras em seu caderno de notas. Esse texto só pode ter sido escrito ao final da tarde: sai dele uma luminosidade crepuscular. Naquele mesmo dia Camus já pintara uma paisagem matutina:

"Um domingo de manhã cheio de vento e de sol. Em volta do grande lago o vento espalha as águas da fonte, os barcos minúsculos sobre a água enrugada e as andorinhas em redor das grandes árvores." Textos são como cenários: neles brilha a luz sob a qual foram escritos. Nisso são irmãos das telas de Monet. Esse texto é poesia. Foi construído com metáforas.

Se deseja saber mais sobre metáforas veja o filme "O Carteiro e o Poeta". Seria uma bela forma de celebrar a passagem do ano. Você ficaria feliz. E pode até ser que um milagre aconteça e você se descubra poeta, tal como o carteiro que entregava a correspondência de Pablo Neruda _o único a receber cartas naquela aldeia de pescadores de redes tristes, todos analfabetos. Metáfora é quando se desenha o próprio rosto com imagens pescadas do mundo. Os rostos dos poetas se pintam com barcos, peixes, redes, pássaros, vôos, manhãs, crepúsculos... No caso de Neruda, até mesmo fogo, fumaça e cebolas...

O rosto matutino de Camus aparece pintado no vôo das andorinhas ao redor das grandes árvores. Não voam para lugar algum. Ao meio-dia os lugares não chamam. Por isso elas voam em círculos, sem destino certo. Sob a luz do crepúsculo o rosto do escritor se transforma. O crepúsculo é a hora da nostalgia. Chegam ao corpo melodias vindas de lugares antiquíssimos, quase esquecidos. O corpo ouve o seu chamado. Deseja voltar. Aí os pássaros deixam de voar com círculos e passam a voar com flechas.


O texto termina com uma frase não-terminada: "Assim, talvez, na noite da vida..." É uma confissão de poesia: não era sobre o vôo dos pássaros que ele falava ao falar sobre o vôo dos pássaros. Falava sobre ele mesmo, sobre a inevitável noite da vida quando ele ouviria o chamado e saberia para onde ir. Será que é só sob a luz do crepúsculo que nos tornamos sábios?


O ser e o pensamento flutuam ao sabor da luz. Ao meio-dia o céu é um lago-espelho de ágata azul. Nada se move. O tempo não existe. Tudo é eterno. Ao crepúsculo, entretanto, o lago imóvel se transforma em rio. Rapidamente as cores se sucedem, o azul vira amarelo, o amarelo passa ao verde, ao rosa, ao laranja, ao vermelho, ao roxo para, finalmente, mergulhar em cachoeira no negro da noite: "Tempus Fugit".


Divagando como psicanalista sobre a filosofia de Parmênides imagino que seu pensamento nascia sob a luz do meio-dia, o tempo suspenso, todas as coisas paradas, o Ser brilhando como esfera imóvel e eterna. "Apenas as pedras existem", ele poderia ter dito. "Tudo o mais é ilusão". Mas Heráclito, o filósofo do fogo e do rio, certamente pensava ao sabor das cores do crepúsculo, quando as pedras se transformam em rio. "Tudo flui. Nada permanece. Somente os rios existem. Todas as pedras são ilusão."


Camus, no mesmo caderno, pinta um outro crepúsculo: no céu poente coberto de nuvens negras uma delicada faixa azul transparente. "A sua presença é uma tortura para os olhos e para a alma", ele diz. "Porque a beleza é insuportável. Ela desespera-nos, eternidade de um minuto que desejaríamos prolongar pelo tempo afora."


O crepúsculo faz chorar. A beleza faz chorar. Choramos porque o crepúsculo somos nós. Somos belos e efêmeros como o crepúsculo. O crepúsculo nos dá lições sobre o nosso ser. Cecília Meireles se via nele:


"Este odor da tarde, quando começa o cansaço dos homens/ quando os pássaros têm uma voz mais longa, já de despedida,/ Declina o sol _esta é a notícia que a terra sente, na floresta e no arroio.../ E então o odor da terra é uma exalação da saudade,/ um suspiro de consolos, também, e o orvalho que as plantas formam,/ parece igual à lágrima/ e cada folha, nas árvores, é um outro rosto humano."


Amo os crepúsculos. Ajudaram-me a amar o rio, o tempo que passa. Rios e crepúsculo são a mesma coisa. A revelação poética me veio quando me percebi velho, mas descobri também que o crepúsculo morou em mim desde que eu era menino, do jeito mesmo como acontecia com o Miguilim, para quem toda manhã já era tarde. As cores e o tempo do crepúsculo me tornaram um pouco mais sábio. Para se ficar sábio é preciso ser discípulo da morte.


E o crepúsculo é o seu lugar predileto de falar conosco. Porque no crepúsculo ela nos vem vestida de beleza. Está dito nos versos de Wordsworth: "As nuvens que se ajuntam ao redor do sol que se põe/ ganham suas cores solenes/ de olhos que têm atentamente montado guarda sobre a mortalidade humana."


"Assim, talvez, na noite da vida..." O ano chega ao fim. Foi-se o imóvel lago azul de ágata. O tempo se espreme furiosamente numa garganta para o mergulho no escuro. Seria o tempo para a metamorfose dos vôos, os círculos se transformando em flechas. Mas a impressão que tenho é que as pessoas caminham de costas para o poente.


Amam as cores do crepúsculo, mas temem o que elas dizem. O "Angelus" as deprime, e até inventaram uma liturgia crepuscular chamada "happy hour", cujo objetivo é exorcizar as cores solenes das nuvens que se ajuntam ao redor do sol que se põe, liturgia que no fim do ano vem com o nome de réveillon. Quanto a mim, preferirei aprender dos rios e dos crepúsculos.


São apenas duas as coisas que a morte nos diz, de sua beleza crepuscular, resumo de toda sabedoria: "Tempus Fugit". Portanto, "Carpe Diem". Quem sabe isso voa como os pássaros ao cair da noite.


RUBEM ALVES, escritor e psicanalista, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
publicado na Folha de São Paulo, edição de 31-12-1995.

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